césar

Image73 anos

Quando terminámos a nossa conversa senti-me saída de um filme, ou de uma novela. Acabou a conversa, depois de muito caminharmos no tempo e noutros espaços e, de repente, voltei a ouvir a televisão e o burburinho das pessoas à volta. Durante cerca de hora e meia, sentada com César numa mesa do café que lhe é homónimo, não me lembro de lá ter estado. Saímos dali e viajámos. Disse-lhe isso, ao que me respondeu: “É uma novela é, e grande!”.

Com 73 anos César tem uma história única para contar às netas. E planos para o futuro. Vamos à história? Claro!

Comecemos pelo início da década de 40 do século passado. Decorria a 2.ª Guerra Mundial. Portugal vivia num regime político autoritário e corporativista de Estado (o Estado Novo). Salazar governava. Vivia-se mal. Tanto mais numa pequena aldeia do interior de Portugal. Foi neste cenário que César, o filho mais novo de um total de seis começou, com 6 anos, a trabalhar. Sim, a trabalhar.

Com 6 anos achou-se “Moço do Correio”, para ajudar as fracas economias de casa. Com 6 anos fazia 1 hora de caminho a pé até à vila, junto com os adultos que vinham para os seus trabalhos. Vinha o pingente buscar a mala do correio que distribuía depois na sua aldeia e em mais três localidades vizinhas.

Quando César diz ”não tive tempo para crescer” percebe-se o porquê. O despachado rapaz, de 6 anos, não tinha sequer idade para levantar a mala nos Correios, era uma senhora que distribuía numa outra localidade que lhe levantava a mala e lha dava num ponto onde se encontravam. César pegava na mala, ou malas, e voltava uma hora de caminho mais os quilómetros entre as 4 aldeias. Distribuía as cartas aos seus Postos e voltava à vila a tempo de entregar a mala e voltar a pé para casa, novamente junto com os homens que voltavam do trabalho. Ganhava 4 escudos por dia, levava para casa 120 escudos por mês.

Aos seis anos de idade.

Quando César reforça: “Já nasci velho”, fala dos pais com mais de 45 anos quando o trouxeram ao mundo, mas fala também da maturidade que atingiu, talvez, cedo demais.

Começou a trabalhar aos 6 anos mas foi à escola. Claro que foi. Insistiu que o deixassem fazer a escola numa aldeia vizinha à sua e conseguiu. É que assim conseguia ir muito cedo à vila buscar o correio, distribuí-lo, chegar àquela aldeia a tempo da escola, sair da escola às 3 da tarde e correr para a vila a entregar a mala vazia, mesmo a tempo de voltar com os homens para casa.

Concluiu a 4.ª classe. Ainda hoje colegas de carteira daquela altura lhe dizem que devia ter tido oportunidade de estudar mais, que ele sabia e aprendia bem, mas não podia.

Concluída a escola, com 10 para 11 anos, foi dar serventia a Estucadores, foi ajudar a fazer minas, foi 3 anos para a Ceifa, fez azeitonadas, trabalhou em lagares. Com 16 anos, dentro dos trabalhos que ia fazendo, decidiu-se a trabalhar de verão na Resina e de inverno a fazer minas. Na resina o seu trabalho era o de fazer as feridas nos pinheiros e explica que “tinham que ser pinheiros adultos com, pelo menos, 65 cm de diâmetro. À altura do peito de um homem fazia-se no pinheiro a sangria a uma altura de 50 cm, ou seja, o pinheiro era descarrascado, tirava-se a capa. Nesse espaço, com um utensílio de ferro fazia-se a ferida, mas uma ferida certa, naquele espaço entre o fim da carrasca e o início da madeira, que não se podia danificar a madeira. Fazia-se a ferida e injectava-se na árvore ácido sulfúrico”. A resina escorria depois para os vasos para as raparigas irem depois buscar, entre elas Luísa – mais tarde a sua Luísa – que fazia esse trabalho. Já na altura os seus trabalhos se complementavam, tal como veio a acontecer mais tarde e para toda, mas toda a vida.

César refere que não havia muito trabalho certo, era preciso trabalhar e ser bom trabalhador, mas trabalho nunca lhe faltou. Relembra que uma vez, ainda novo, foi chamado para um trabalho, de cavar uma vinha. Pediu ajuda à mãe. “Fomos para uma horta e a minha mãe ensinou-me a cavar a monte. Cheguei para começar o trabalho e era para ser o aguadeiro, porque era magrito, mas quando o patrão me viu a trabalhar, já não fui aguadeiro.” No fim da semana pagaram-lhe o salário inteiro, como a um homem adulto e continuou lá a trabalhar, era o único rapazito. Relembra que “quando recebi o dinheiro fui todo contente levá-lo à minha mãe, que o dinheiro era todo para ajudar em casa”.

A tropa

Com 21 anos foi fazer a inspecção para a tropa. “Ia-se a sortes e diziam que eu ia ser livre da tropa mas o médico quando viu as minhas mãos, com os calos e as mazelas da resina, disse que eu, com rancho e ginástica, dava um bom soldado”. E lá foi. Das primeiras coisas que fez na tropa foi tratar da Pensão de Amparo para os pais. Era o único filho em casa, os irmãos já tinham saído, os pais já tinham idade, dependiam dele. Receberam uma pensão de 500 escudos durante os 26 meses em que prestou serviço na guerra, mais um depois de sair. César orgulha-se e diz “já era um bom dinheiro”. Dos tempos de tropa fala como tendo tido muita sorte. “Chamaram-se para o Serviço de Saúde. Fui Maqueiro, cheguei a Cabo de Enfermaria. Tive 17,93 valores na Escola de Cabos, está tudo escrito na Caderneta” (que ainda guarda). O País chamou-o entretanto para a Guerra. O destino foi Angola. Diz que voltou a ter sorte. “Não havia lá posição para Cabos Maqueiros, só Cabos Enfermeiros mas como tinha tido boas notas na Escola de Cabos fui para o lugar de Cabo Enfermeiro, Chefe do Posto de Socorro, fui lá bem tratado, um menino bonito”. Rimo-nos. Conta que andava sempre junto do Comandante, porque guardava os medicamentos. Integrava a Companhia de Comando e Serviços (CCS), o núcleo que acompanhava o Comandante: Rádio, Posto Médico e Decifradores. Não se queixa desses tempos, conta que na Caderneta Militar (a que ainda guarda) lhe “escreveram um louvor com 3 páginas, que explica tudo o que lá fiz”.

Quando terminou o serviço militar pensou ficar por Angola mas os pais, já de idade, pediram-lhe que regressasse. E César voltou à terra.

O regresso às origens

Explica logo que voltou “mas por pouco tempo, isto não evoluía”. Arranjou trabalho na Fábrica de lanifícios da Vila. Casou com a sua Luísa. Quis ir fazer vida na Alemanha mas, conta “tínhamos que ter uma licença das senhoras do Movimento Nacional Feminino para emigrar e elas não ma deram, porque tinha cá trabalho”. Estava na Fábrica há ano e meio, ganhava como Auxiliar e trabalhava como Operador de Máquina. Nasceu-lhe o filho. Se há coisa que se distingue no seu carácter é o de não se conformar. Pediu um aumento correspondente ao trabalho que desempenhava. Que iam ver, mas nada. Nova conversa, mais desculpas. “Despedi-me. Despedi-me mas na segunda-feira fui para lá cumprir o tempo que tinha a dar à entidade patronal e depois fui-me embora”. Foi para Angola.

Levou 500 escudos no bolso para se precaver. Assim que lá chegou pensou que não havia de passar ali fome. Mandou os 500 escudos para trás numa carta para Luísa e o menino se governarem até irem ter com ele. O dinheiro nunca lhes chegou. Ri-se. Sim, hoje em dia César ri-se ao contar que ficou ele lá sem dinheiro, e eles cá na mesma. Desapareceram os 500 escudos.

Novamente Angola

Passou 2 dias pelas ruas, dormiu literalmente num banco de jardim. Mas sabia onde havia de ir bater à porta. Ao fim de 2 dias encontrou um amigo com quem esteve na tropa, era motorista e ia, acredite-se, para o mesmo lugar onde César queria ir, a mais de 200 quilómetros de Luanda. Deu-lhe boleia. César chegou onde queria e foi bater à porta do Sr. Morgado, que era de cá e que tinha um negócio lá. Pediu-lhe trabalho. Tinha contratado um empregado há 3 dias. “Ele disse-me que de empregado não precisava mas que tinha ali tecto e comida até encontrarmos trabalho para mim. Fiquei lá 3 meses sem saber se ganhava ou que já lá trabalhava”. Não percebi o comentário mas César explicou-me depois. O tempo foi passando e ele ia ajudando no negócio, onde era preciso. Foi a uma casa pedir trabalho mas o Senhor disse: “estou cansado de amansar potros”. César conta que nesse dia ficou triste, magoado. Passados 3 meses veio um rapaz dos Santos, com quem tinha andado na escola, dizer que lá numa casa precisavam de um empregado. Foi aí que o Sr. Morgado disse: “quem os quer bons, arranja-os. Tu estás a trabalhar aqui desde o primeiro dia que aqui entraste. Deu-me o dinheiro para ir à Companhia comprar as passagens para a minha mulher e o menino”. E assim foi. Embarcaram de Portugal pelo Natal. A sua família chegou junto de si em Janeiro de 1967 “no dia em que o meu filho fazia um ano”. E dizem que não há coincidências…

Ficaram lá a trabalhar. Em 1969 o patrão chamou-o e propôs um género de sociedade. O Sr. Morgado vinha com a família passar 1 ano a Portugal e o contrato era que César e Luísa ficassem a tomar conta do negócio. No final, ganhavam 50% do lucro que conseguissem nesse ano. O filho, que era amigo dos filhos do patrão, veio com eles para Portugal. César conta que ele mais a sua Luísa atiraram-se verdadeiramente ao trabalho. “Nesse ano enviámos mais de 200 toneladas de café para Luanda. Fazíamos de tudo, empacotávamos o café e mandávamo-lo para lá”.

Quando o patrão voltou disse que, com aquela percentagem ia receber muito, não podia continuar a trabalhar lá. Negociaram, dos 50/50 actuais para os 60/40 e César explica que “era mais justo pois ele é que ficava a pagar a manutenção e as despesas”. Mas entretanto o Sr. Morgado chamou-o e fez-lhe nova proposta. “Ele disse-me que ia voltar definitivamente para Portugal, propôs-me, porque eu tinha ganho aquele dinheirito, que lhe comprasse o negócio. Eu pensei, pensei, fiquei cheio de medo mas fui em frente, fizemos negócio. Comprei-lhe a casa e o negócio”.

Podemos fazer uma pausa e dizer que os anos que vieram foram de ouro. Nasceu-lhe a filha, o negócio evoluiu, montou um segundo negócio numa vila vizinha. César fala, claro, de muito trabalho, mais a sua Luísa, mas naquela altura, relembra “não é que fosse assim muito, muito rico mas não tinha que olhar para o dinheiro quando queria comprar o que me apetecesse”. Conta ainda que se dava bem com toda a gente. Relembra que “uma noite, às tantas, um dos pretos que lá trabalhava veio chamar-me e dizia «senhor, a senhor, a minha mulher vai parir» e eu perguntei-lhe quem é que tinha feito o prenho,e lá fui servir de ambulância, fazer 20, 30 quilómetros pelo mato para a trazer para o hospital. Fosse a que hora fosse eles sabiam que podiam contar comigo”. O que lhe trouxe dissabores.

Relembra a altura em que mandavam recolher em camionetas os originários daquela zona. Havia uma família que trabalhava para eles e vivia ali junto, o filho de César comia lá em casa. Levaram-nos e ela disse, de cima da camioneta «Ó Patrão, deixa-me ir embora…». César comoveu-se e chorou.

Na altura do Natal a empresa fazia ofertas às autoridades locais. Quando já tinha os dois negócios as ofertas partiam da sede, mas em nome da companhia. César conta que chegava a fazer ofertas de 400, 500 contos, mas havia quem quisesse receber dos dois negócios. Começou a sentir que andavam em cima dele. César explica que “há coisas que nós sentimos, se passarmos por alguém na rua conseguimos sentir o que vem dessa pessoa, seja bom ou mau”. Falamos dessas energias, que sim, existem.

O princípio do fim

Veio o dia em que a PIDE o prendeu. Tinha ido buscar um carregamento de café a outra Tonga e tinha as guias para fazer o transporte ao nascer do sol, mas a essa hora já ele queria ter o café no mercado e fez-se à estrada. Apanharam-nos logo. A Segurança Pública. Deram-no como terrorista. A mulher fez-lhe uma mala e levaram-no. Esteve 29 dias a mais de 200 quilómetros de casa, ninguém sabia dele. A cela era pequena mas tinha uma cama e uma casinha de banho. Tinha uma vigia para a rua com uns 10 ou 15 cm. De manhã vinham recolher o colchão e os lençóis e à noite devolviam-nos. A porta tinha uma portinhola de onde o chamaram para interrogatório. Perguntaram-lhe tudo e mais alguma coisa. Inclusivamente porque tinha chorado quando levaram os pretos. Perguntaram-lhe, acusando-o de terrorista, se pertencia ao MPLA, à UNITA ou ao Portugal Livre. Conta que nem sabia da existência deste último partido. Respondeu “sou tanto ou mais patriota como o que me mandou para aqui, não me vendo”. Mandou ver a Caderneta Militar, que pediu à mulher para colocar na mala.

César pausa e explica que, se fizer um resumo da sua vida “olhando para trás vejo que há algo superior a nós que sempre me guiou”. Dá que pensar.

Mais quando explica que, no interrogatório, às tantas lhe perguntaram: “Você cumpriu o Decreto de 24 de Dezembro?”. É impressionante vê-lo a tentar explicar a velocidade a que começou a pensar numa coisa que não fazia ideia o que era. Explica que: “a minha cabeça nunca andou tão depressa, deu voltas e voltas, andava a mil e às tantas eu pensei que a 24 de Dezembro era a véspera de Natal e respondi: «Cumpri. Se calhar não era o que essa pessoa queria»”. Soltaram-no. Porque não tinham nada a que se agarrar. Conclui que “somos guiados”.

César fala dos anos que viveu em Angola com aquele sentimento que só se encontra em quem viveu nas antigas colónias e experimentou um bocadinho de paraíso.

Não quer lá voltar, diz que não aguentaria a emoção. O filho está, entretanto, emigrado exactamente em Angola. Fala da Roça Santarém, enorme, o paraíso na terra. Os campos ordenados e trabalhados em grandes quarteirões, bonito como nunca se viu no mundo. O paraíso.

Conta que ainda foi fotógrafo. Comprou os livros, estudou-os, deu 200 contos por um laboratório de fotografia e fez-se fotógrafo, a par do outro negócio. Fico sem perceber.

Pergunto-lhe se era um passatempo, uma paixão. Responde-me que foi uma oportunidade e explica que “a certa altura tornou-se obrigatório ter um cartão de residência, toda a gente. Saiu a lei que o cartão tinha que ter fotografia, foi uma oportunidade porque ali não havia fotógrafos. De dia trabalhávamos no negócio e, à noite, íamos para o laboratório fazer as fotografias, eu e a Luísa”. Sempre os dois, claro está.

O adeus ao sonho

Os últimos tempos que lá viveu não foram fáceis. Fala de uma noite em que “era tanto fogo, tanto tiro, tudo estremecia, ao ponto de as braçadeiras das portadas das janelas se arrancarem só com o estremecer. De manhã eram tantas cápsulas no quintal que se enchiam sacos desses do adubo. Outra vez caiu uma granada no quintal, fez um buraco que cabia lá um jipe desses pequenos que por ai há.”

Foi a Guerra Civil que acabou por o fazer voltar a Portugal. Primeiro mandou a família. Chegaram a Luanda e César explica que o que viram não tem explicação. “Matavam-se pessoas como se matam coelhos. Vimos cadáveres, valas comuns onde os camiões despejavam corpos. Aquilo não são coisas que uma criança veja. Os meus filhos passaram muito e sei que isso os afectou”. Mandou a família para Portugal e ainda ficou mas saiu de lá 12 dias antes da Independência. Chegou a Mação na véspera do Dia de Santos. Conta que voltou pobre, deixou lá 2 negócios, um com apenas 6 meses.

Voltaram e fizeram-se à vida.

Hoje César tem um dos cafés do cimo da vila. Ele mais a sua Luísa. Fala do medo que teve de uma doença que quase a levou e conta que “não achei que hoje a tivesse aqui”. Enquanto conversamos ela vai atendendo a clientela. Tem sempre uma palavra, um cumprimento.

César fala ainda do futuro, que o contrato do café termina dentro de ano e meio. Se não for renovado custa-lhe. Fez a casa. Tem-lhe o nome. É acima de tudo um entretém. Mas não se assusta. “Se não for este gostava de arranjar um mais pequeno, uma casinha só de sopas e uns cafezinhos. Se não ficamos em casa a olhar um para o outro, temos que ter alguma coisa para nos entretermos na velhice”. Nunca baixa os braços, isso não.

Conclui dizendo que “o caminho está aberto para toda a gente, mas alguns não o sabem encontrar”.

Um enorme obrigado a César, O Filósofo, César o Crente. Há realmente que acreditar. Vamos procurar o caminho?!